Côn. José Geraldo Vidigal de Carvalho
As bem-aventuranças falam de felicidade, mas há necessidade de se viver intensamente estas oito beatitudes (Mt 5,3-11). Com efeito, o cerne do cristianismo é a vida que é o próprio Cristo com o qual deve se identificar o seu discípulo através de uma união profunda com o Mestre divino. Eis a razão pela qual as bem-aventuranças colocam em questão o amor que é o coração da doutrina de Jesus: “Amai-vos uns aos outros como eu vos amei”. Disto resulta o ser feliz, cujo desdobramento se dá no óctuplo trajeto acima referido. Para bem se compreender tudo isto cumpre se lembre que o bem-aventurado do Evangelho ressoou historicamente numa sociedade em estado de profunda desorientação. O mundo no qual nasceu o cristianismo era um mundo que oscilava, que perdia sua segurança, seu sentido.
Um historiador da Antiguidade que Freud cita na sua obra “Moisés e o monoteísmo”, escreve a propósito desta época: “Parece que uma grande melancolia tomou conta dos povos do Mediterrâneo”. Trata-se de uma grande verdade. O mundo politeísta que desaparecia era um mundo no qual os deuses estavam presentes por toda parte. Era um contexto no qual esta religiosidade, embora repleta de erros, tinha um certo rumo. Ao contrário, o tempo da Roma imperial é um tempo de angústia, de miséria, de grande abandono. O estoicismo e o epicurismo que se desenvolvem então são tentativas frustradas para responder a este desorientação. Os estóicos e os epicureus são pessoas atormentadas que procuram desenvolver exercícios para se preservar deste desnorteamento. Nesta conjuntura as bem-aventuranças oferecem uma atitude, uma disposição geral da vida humana, afastando a desilusão e a mera resignação.
As bem-aventuranças são uma celebração da vida. Bem-aventurado significa glorioso, aquele que está imerso em paz, ou seja, quem coloca em prática as oito proclamações lançadas por Cristo. Não se trata de meros conselhos, de regras de comportamento deduzidas de princípios, mas são uma afirmação contundente. É aquilo que deve ser o verdadeiro cristão que almeja o Reino celeste. Trata-se de um encadeamento de meios e fins. Dentre as bem-aventuranças cumpre, porém, se ressalte uma que é tão chocante para o mundo de hoje imerso no hedonismo mais aviltante: “Bem-aventurados os puros, porque eles verão a Deus”. Puro aqui é sinônimo de límpido”. Quando se diz que uma água é pura, límpida, se quer dizer que é também transparente. Há então uma ligação entre ser puro e ver a Deus. Com esta bem-aventurança se passa do sagrado ao santo.
Com efeito, quando se pensa em Deus sob o aspecto sacro, se julga que com um rito de purificação se pode contemplá-lo, quando, na verdade, quem tem o coração puro está em condições, através da limpidez de seu ser, de ver a Deus. Para Jesus não se trata de um processo cultual. Nas religiões antigas e no próprio judaísmo grande era a importância das purificações rituais associadas à pureza. Esta beatitude faz remontar a toda a tradição profética que critica os ritos e os que consideravam que a purificação exterior era suficiente. Jesus empregará inclusive uma expressão forte: “Sepulcros caiados”. Esta bem-aventurança fala, isto sim, de uma limpidez interior que envolve todo o ser humano. Por vezes, quem a possui como que toca o Infinito no momento de uma prece profunda. A purificação interior é a purificação de todos os incômodos materiais, de todas as dominações sensíveis, colocando o cristão além do limite de tudo que é mundano. Este não está preso a esta terra e, em a ultrapassando, penetra no mistério divino pela via do amor. Afirmou São João que “Deus é amor, e quem permanece no amor permanece em Deus e Deus nele” (1 Jo 4,16). É preciso, realmente, que se aprofunde o sentido das bem-aventuranças que devem se tornar, de fato, a subversão que Deus introduz no mundo dos humanos, quando este vivem sob o influxo do Espírito divino.
Nenhum comentário:
Postar um comentário