A expectativa escatológica e o problema do mal no mundo
Diante de tanta violência, ódio, conflitos bélicos, cataclismos, e de todo tipo de flagelo que vemos assolar a sociedade contemporânea, e ainda cito o caso específico da tragédia que envolveu a morte de doze crianças em Realengo na semana passada, ficamos assombrados e inconformados, nos questionamos sobre o mal e o sofrimento no mundo, não entendemos porque eles existem, porque tais realidades dominam o cenário da nossa história, e numa tentativa de encontrarmos um atalho para tudo isso é comum até se dizer, “(…) é o fim dos tempos”. Sim, a expressão de certa forma é feliz, pois conforme a própria teologia cristã-católica enuncia aos seus fiéis, todo quadro histórico que se desenvolve desde a gloriosa Ascenção de Jesus Cristo aos céus até o dia de hoje e, ainda, até os dias vindouros e últimos, estamos mergulhados nesta realidade final, última da história, ou ainda, em outros termos, escatológica (termo empregado para designar as realidades últimas da história da salvação, como o céu, o inferno, o purgatório, o juízo particular e o final). Daí nasce inclusive uma expressão muito utilizada pelos teólogos, tensão escatológica, que é uma imagem perfeita para este pequeno excurso que faremos sobre a realidade apocalíptica que corre a história humana proclamando o bem último, o da salvação universal que subjuga todo o mal da história, o vence, o arrasta ao fracasso em seus intentos. Por isso esse excurso se integra bem com o problema do mal e do sofrimento no mundo, sobre o qual iremos discorrer nesta postagem.
Situemo-nos, pois, nesses enunciados da apocalíptica a que acima nos referimos. A palavra tensão designa a oposição de forças entre uma extremidade e outra que tende a expandir um objeto, que pode pôr fim a sua integridade, seccioná-la ou dividí-la causando um irrompimento de uma nova realidade sobre ele, uma nova configuração do objeto. Bem, essa tensão escatológica é uma realidade misteriosa da fé, que quem a possui, ainda que não seja um teólogo para compreender seus enunciados todos, mas simplesmente pelo senso da fé (senso fidei), consegue percebê-la e vivê-la de modo intenso pela realidade da esperança da salvação que tanto aspiramos, realidade própria da natureza mesma da fé. Porém essa tensão se dá sobre a história e sobre o homem, o seu princípio está no mistério de Cristo que regenera a história para nela colocar umtermo final, constituindo para o homem uma Promessa, e essa promessa dá as razões da nossa esperança, e essa esperança nos tensiona a esse termo final que se dará na salvação pessoal (juízo particular), já dada a todo homem que confessa e vive a fé em Cristo Jesus, e universal, quando haverá o juízo final que porá fim a história, subsistindo somente as realidades últimas e eternas.
Mas o que tensiona a história e o homem a essa dimensão escatológica? A história converge a um fim, este fim é o seu próprio princípio, é Deus a sua origem e será n’Ele também que ela se desnudará e se encerrará. Para tanto, essa convergência da história a Deus se dá pela ação de sua providência, de tal modo que, fazendo jus a este viés teológico, afirma São Paulo aos Romanos em relação aos sofrimentos vividos no tempo presente: “Tudo concorre para o bem dos que amam a Deus” (Rm 8,28). Na verdade, a teologia judaica e cristã primitiva, bem como suas tradições e os numerosos textos das Sagradas Escrituras estavam embebidos dessa mentalidade de que Deus é aquele que, sendo a origem de tudo, governa tudo, plenifica e põe termo a tudo. O termo designado a estes princípios teológicos, chamamos de universalismo, oriundo de uma concepção propriamente monoteísta (Deus é o Único, não outro além d’Ele, ele é o Poderoso, o Forte, o Santo, tudo fez, criou e governa com sua mão). O cristianismo assume bem todos esses princípios teológicos e entende-os por Jesus Cristo e seu Mistério de um modo Trinitário.
E agora, tendo em vista tudo isso, procuremos agora responder ao problema suscitado sobre esse tensionamento escatológico que recai sobre o homem e a história. Podemos notar que a tensão escatológica que se dá sobre a história está na própria execução dos desígnios de salvação de Deus, no que Deusprovê na história para a salvação universal. Nesse sentido, Deus mesmo tensiona a história, a move em favor da salvação universal. Essa tensão sobre a história, que se inaugura pela história da Revelação Divina que tem como cerne o Mistério de Jesus Cristo, alcança o homem pela fé, que o faz viver um maravilhamento dos desígnios de Deus e tender (não como compreendemos vulgarmente no modo usual como uma simples inclinação, ou comoção, mas no sentido mesmo de tensionar, de ser, pela experiência da fé, transportado subitamente, arrastado) ao Seu Mistério. Entenda que essa tensão, que alcança o homem e a história, não emerge da história pela história, da história em si mesma, mas da história compreendida pela Divina Revelação no Mistério de Jesus Cristo.
E o que tem o problema do mal e do sofrimento no mundo com esse tema da apocalíptica e com a matéria escatológica? Ora, tem tudo haver. Note bem. Se a escatologia diz respeito àquelas realidades últimas que inserem a existência humana na dinâmica da salvação, da redenção, da libertação do pecado e de todas às suas consequências para o homem e para a história, donde gloriosamente se firma a vitória triunfal do bem sobre o mal, a visão escatológica da história humana, que coube a Divina Providência alinhar a história da Divina Revelação como o suplemento da esperança cristã, é a resposta ao drama da existência humana que padece do mal que o faz sofrer .
O problema do mal no mundo
Tudo bem. Esclarecido esse ponto, nos interrogamos ainda: Mas o que é o mal? Quem o produziu, o criou, e o introduziu na história? Por que do sofrimento e da dor? São questões que para nós hoje não são difíceis de responder no campo teórico, pois outros pensadores trabalharam sobre esses aspectos deixando-nos uma síntese peculiar e de relevante importância, como foi o caso de Santo Agostinho que dedicou boa parte de suas obras para esclarecer o problema do mal, principalmente quando sentiu a necessidade de responder com precisa argumentação a postura maniquéia (seita herética da qual Agostinho tomou parte durante um período da sua vida antes de se converter ao cristianismo), que entendia o mal numa perspectiva dualista, na qual o mal é uma realidade existente em oposição radical ao bem. Agostinho consegue vencer por profundas demonstrações que os maniqueus estão equivocados deixando para nós uma reflexão filosófica significativa para as futuras gerações de pensadores.
Ora, se se afirma que o mal é uma existência real, daí nasce um problema, pois se o mal é uma realidade existente, assim como o bem, a verdade, a bondade, que se perguntarmos a qualquer homem fiel quem os criou, com certeza, dirão que foi o próprio Deus, então, quem produziu o mal? Deus? Bem, só Deus tem o poder de dar o ser a qualquer realidade do cósmo, só pode ter sido Ele mesmo quem o produziu, se é que o mal é realmente uma existência em si. Mas não, Deus não o criou. A resposta ao problema depende da desconstrução do seu princípio. O mal não é umaexistência real, mas relativa. E o que vem significar isso? A existência relativa é um modo de falar da não-existência ou da privação de uma existência real e concreta. Não entendeu? Tente entender pelo seguinte exemplo: O nada existe? Não, o nada não existe realmente e nunca existiu, uma vez que Deus é eternamente existente, que quer dizer que mesmo que não existisse o mundo, o homem, a história, e toda realidade cósmica, o nada nunca existiria, pois Deus ainda sim seria o Ser e o Existente por excelência, sendo o suficiente para que o nada jamais viesse existir realmente. Mas, então, por que usamos o termo “nada”? Falamos do “nada” de modo relativo, pois já que ele não existe, o afirmamos com relação a alguma coisa que é, que existe. Por exemplo, alguém lhe pergunta: “Que você tem fulano?” E você responde: “Nada”! Você sabe que a pessoa está querendo lhe perguntar se você está padecendo de algum mal, mas para negar e afirmar o contrário você afirma com objetiva resposta o termo “nada”. Nesse sentido, você está usando o termo de modo relativo, pois você o está relacionando a sua real condição de maneira oposta a afirmação do outro que lhe está interpelando. Se diz relativo porque está em relação a alguma coisa. Insisto. Nesse caso específico que estamos citando, quando você responde “nada”, você está significando nada a um bem atual em oposição relativa àquilo que outro está pensando e concluindo, que você não está bem, está com algum problema, padece de algum sofrimento. E ao usar o termo você não só nega o pensamento do outro, como também afirma que está bem e não padece de nenhum mal.
Perceba que o termo “nada” dentro de um contexto pode significar alguma coisa, ganha sentido, definição, porém agora se eu lhe perguntar, o que é o nada? Simplesmente você não terá realmente nada para me responder, a não ser que responda que o nada trata-se de absolutamente nada, uma não-existência a qual não se é possível definir. O nada não existe, e o que não existe não se é possível definir, descrever, enunciar, mas se pode ilustrar por uma via negativa, como quando fazemos ao empregar a expressão não-existência para a significação do conceito de nada.
E agora se eu te perguntar, o que é o bem? Você poderia me responder que é uma realidade que nos orienta a felicidade e que nos agrada, embora o que nos agrada nem sempre produza a felicidade, suscitando apenas uma alegria fugaz e passageira; mas tratando-se de um bem, certamente, nos orientará a felicidade ainda que seja custoso e árduo realizá-lo. Respondida a questão, ainda perguntaria, e o mal, que ele é? Talvez, obteria de você a resposta de que o mal é o contrário do bem, sendo ele algo que nos orienta a infelicidade (a não-felicidade bem entendida apenas como contrário relativo, e não como existente, pois, na verdade, se carece da felicidade), e que não nos agrada, e que às vezes, pode até disfarçar-se e parecer ser um bem, pois não é raro que muitos males nos agradem os sentidos, como, por exemplo, a vingança, que nasce de um sentimento declarado em nome da justiça e que pode levar o sujeito a pensar que realizando o ato de vingar uma injustiça cometida estará produzindo um bem por sublimar o sentimento que parece ser um verdadeiro senso de justiça, mas que na verdade é falso e está mal formulado na consciência do indivíduo.
Tentemos sintetizar as informações. O mal não pode ser definido senão em relação ao bem, num sentido de oposição, uma vez que o mal tem existência relativa, e o bem, existência real. Mas, voltemos a interrogar, o que é existência relativa? A existência relativa não é uma realidade, é um modo de expressar a privação de uma realidade, é apenas um modo de falar de algo que carece de uma realidade numa outra realidade. Por exemplo, quando afirmamos a seguinte frase, “Lucas é um sujeito mal”. Isso é o mesmo que dizermos: “Lucas não produz nenhum bem, pois ele carece de boas obras no seu proceder, ele age em contradição ao bem”. Perceba a palavra “carecer”, ela designa a uma privação, alguém está privado de um bem. Outro exemplo, alguém diz: “meu copo está vazio, não tem mais nada”; a afirmação “o copo está vazio” significa que não tem mais nenhum conteúdo aproveitável nele, seja para alimentação seja para qualquer outra coisa. Logo, ele carece, está privado de um conteúdo que se possa aproveitar, porém você está falando de modo relativo de vazio e de nada, pois não existe realmente vazio e nada naquele copo, pois nele continuará tendo algum tipo de conteúdo e substância, ar ou gases ou qualquer outra substância, ainda que seja representada atomicamente, mesmo que por uma quantidade mínima e insignificante de átomos, mas nunca estará realmente vazio, nem terá nada de forma real, uma vez que o nada não existe.
Queremos com tudo isso dizer enfaticamente que o mal não existe como realidade criada, não existe de modo fatídico. O mal é a privação, a ausência, a carência do bem numa realidade. Por isso, quando se afirma que alguém é mal, ou que algo é mal, queremos na realidade dizer que esse algo ou alguém carecem de bondade, estão privados do bem, porém não que o mal exista realmente neles. Desta forma, se o mal não existe como uma realidade concreta, Deus não pode tê-lo criado, mas Ele, sendo o Sumo Bem, e não podendo criar o mal, uma vez que Ele só dá o ser às coisas criadas em correspondência ao seu próprio Ser, só deu de si somente o bem, bem como a verdade, a felicidade, a justiça, entre outros. Entenda que Deus, que nunca muda, e é Eterno, Estável, Permanente, Absoluto, não pode criar nada do que esteja fora de Si Mesmo, e a sua Onipotência deve ser considerada em relação a sua própria essência.
Portanto, praticar o mal é uma retroação no voltar-se para Deus, que é o bem por excelência, é fazer o caminho inverso do Caminho que leva a Ele, é negá-lo, é privar-se d’Ele. Logo o mal é a carência todo ou parcial do bem, da mesma forma que a mentira é a carência da verdade, a infelicidade da felicidade, a injustiça da justiça, o ódio do amor, entre outros. É com esses princípios que Agostinho combate e vence o maniqueísmo.
Porém, você poderia ainda me perguntar: mas Deus não é Onipotente, não pode tudo? Eu responderia, não! Deus não pode não amar, não fazer o bem, não fazer a justiça, não ser eterno, Deus só pode ser o que corresponde a sua essência mesma. Deus é Onipotente ou não? Sim, Ele é, mas, insisto, a Sua Onipotência corresponde a sua própria essência, pois Deus não pode se contradizer, produzir o bem e produzir igualmente o mal, a verdade e a mentira, a justiça e a injustiça. Deus pode criar outro deus? Não, porque senão o que ele criar não será deus, já que deus é um ser eterno, que não tem princípio nem fim, tendo seu princípio em si mesmo, não em outro, e se Deus criasse um deus, esse teria princípio n’Ele, logo esse ser criado não poderia ser deus. Deus pode aniquilar (ação de transformar algo existente em nada) o universo? Não! Ora, todo homem fiel crê que Deus é o Ser que dá o ser às suas criaturas. Então, se Ele é o Ser, não pode fazer algo que seja diferente de si mesmo, como nesse caso, o não-ser através da aniquilação. Nesse mesmo sentido, Deus não pode ter criado o mal, pois a sua essência corresponde somente ao bem.
O problema do pecado original, e a recorrência do mal e do sofrimento no mundo
Todo mal e sofrimento recorrente na existência humana é relativo à carência que o homem tem do bem, e de Deus, o Sumo Bem. Porém o mal e o sofrimento às vezes aparecem de modo involuntário em nossa vida, sem que o procuremos. Como explicar isso? Desde que o homem pecou em Adão, o mundo e o homem, feridos pelo pecado original, tornaram-se carentes do bem, que os punha em comunhão íntima com Deus. Esta comunhão é restituída em Cristo. Porém, mesmo que o pecado original tenha sido assumido e purificado pelo Sacrifício de Cristo, permaneceu no homem uma inclinação à prática do mal. Deve-se saber que com o pecado original entrou no mundo toda sorte de mal e sofrimento que atormentam a vida humana estabelecendo um drama para sua existência. Pelo Sacrifício de Cristo, pelo sofrimento do justo, do inocente, todo sofrimento e vitimação pelo mal ganham um novo sentido, o da santificação de si e o do oferecimento pessoal da dor e do padecimento de todo mal em favor da salvação universal, oferecimento que dever ser feito unido àquele sumamente perfeito, o de Cristo. Portanto, desde que Cristo entrou na história, padeceu dos sofrimentos humanos, da injustiça e do mal, tudo isso ganha significado n’Ele e somente por Ele se pode esclarecer toda essa realidade do sofrimento humano de modo perfeito.
O mal no mundo como sinal Escatológico da libertação definitiva
A recorrência do mal na história sinaliza para a necessidade iminente da libertação definitiva do homem. Quando o homem se vê de frente ao problema do mal no mundo sente-se a iminência do fim, daí torno a citar aquela expressão comumente usada nessas ocasiões que o homem se vê diante da absurdidade do mal, “é o fim dos tempos”. A privação do bem ou o mal recorrente ao homem e ao mundo pela força da história e das consequências das decisões do próprio homem reafirma no homem de fé a esperança da libertação, da salvação universal que porá termo a tudo. Mas porque isso se dá? Porque parecendo que o mal está prestes a triunfar sobre a história, e o homem fiel sabendo que somente o bem haverá de triunfar e pôr termo a tudo pela Realeza Triunfal de seu Deus, se lança no paradigma escatológico, como num refúgio seguro, para tentar esclarecer o aparente triunfo iminente do mal na história. A referida expressão é felicíssima nesse sentido, e é uma confissão basilar da esperança escatológica e da vitória triunfal do bem, confissão muito própria ao senso da fé.
Em suma, a esperança cristã responde perfeitamente ao problema do mal no mundo e o sofrimento recorrente, dando um sentido escatológico de libertação inserindo o homem no Mistério de Cristo, ele que, numa antevisão da nossa condição final, Ressuscita nos libertando da morte e do aparente triunfo do mal sobre a história.
Grato a todos os leitores. Deus abençoe.
Antonio Augusto da Silva Bezerra
Fico grato pela citação no seu blog. Juntos pela mesma causa!
ResponderExcluirFico grato pela citação no seu blog. Juntos pela mesma causa!
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